16 abril 2009
"Mais uma tarde sem jeito nenhum" - V
Uma das coisas que se inveja aos artistas é a sua genialidade ao transformar o curioso, o inesperado, o desconfortável ou o perplexo, em objectos, frases ou momentos de espanto. Pelo menos, ele acreditava fervorosamente nisso e, de uma forma quase autofágica, aproveitava todo e qualquer desaire para tentar escrever um pequeno texto, um conto ou, quem sabe, até um romance.
Tantas foram as vezes que partiu em direcção à “página desconhecida”, que um dia se apercebeu de que nada mais tinha para dizer e de que os personagens que criara e a quem dera rosto, dele se tinham simplesmente fartado e definitivamente partido: o José já desistira de trabalhar como caixeiro-viajante e trabalha agora numa firma de contabilidade; a Rute tinha conseguido perdoar ao pai e ao irmão todos os maus-tratos que, durante anos, lhe infligiram; o Luís acabou por enlouquecer sem realmente saber quem era.
Afinal não tinha sido apenas abandonado pela Rita, mas sim por todos os que lhe estavam próximos, até mesmo por aqueles que ele inventou.
Então, pensou a sério, ainda mais a sério, sobre o que lhe estava a acontecer. Quem teria realmente partido? Quem se afasta primeiro? A partir de onde se começa a medir o afastamento? Começa-se de cá para lá ou de lá para cá?
Todas estas questões ainda lhe povoam o espírito, principalmente porque são dúbias, ambíguas, revertíveis. Ele sabia que não há zona mais pantanosa do que o terreno do “eu”, mas tinha de haver uma saída!
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