13 fevereiro 2009

Solteiro


sky belem

Inevitavelmente, a partir de um certo dia, Henrique começou a confrontar-se com os anos que já contava. Tinha chegado àquele momento em que já se é velho para as crianças e em que se ainda é jovem para os mais idosos ou seja, algures entre os 30 e os 60. Henrique sempre fora um solitário, pelo menos perante o olhar curioso dos outros.
Os solteiros fazem parte de uma raça que procura quase sempre a companhia dos seus iguais, julgando assim livrarem-se da nem sempre silenciosa exigência dos não-solteiros para abandonarem esse estado de graça e também de desgraça, concluiu ele tantas vezes e concluir não é tão definitivo como à primeira vista pode parecer.
Voltando à questão inicial, Henrique começou a atravessar o que vulgarmente se chama de crise existencial, que é algo complicadíssimo para quem a vive e sempre fácil de resolver, para quem está de fora. Claro que isto de crises existenciais não é exclusivo da raça dos solteiros e já houve quem jurasse ao Henrique que as dos não-solteiros são muito piores de atravessar. Não se sabe se ele acreditou ou se quem lhe disse tal também acreditava no que dizia, mas aqui fica o registo, para que conste.

Passou tempo.
A tristeza e a solidão são lâminas para engolir e ele sentiu-o profundamente.

Passou mais algum tempo. Algum que, para ele, foi muito.
Nada se passou.
Agora não se lembra quantos dias ou quantos meses foram, porque nada, em cinco meses, é o mesmo que nada, em cinco dias. Uma crise existencial é como um oceano para atravessar, sem bússula, estrelas ou planetas.
Depois da tempestade vem sempre outra coisa qualquer, o que na realdidade não é muito consolador, porque depois dessa coisa qualquer, vem sempre outra tempestade. Apesar disso, Henrique julgou já ter passado todos os seus dias de tormenta.
Uma semana depois de qualquer um destes dias passados, conheceu Amália e gostou dela, como se gosta de um rio, quando se gosta de rios. Nos dias seguintes imaginou navegar nela, conhecer-lhe as margens e prometendo a si mesmo que não naufragaria.
Amália nunca tinha tido nenhuma crise existencial, talvez por não ter a consciência da sua existência, das crises e da sua própria. Aí residia o seu grande encanto. Abandonava-se ao tempo discretamente, como o rio imaginado por Henrique e maior sintonia não poderia haver entre a entrega de um e o desconhecimento do outro.
Não se sabe por quantos meses ou anos navegaram, mas fizeram-no como se os rios não tivessem cais. Ele, durante esse tempo, esqueceu-se dos anos à deriva e ela imaginou sempre que haveria um mar, longe.
Já sabiam de cor as marés, os levantes, as borrascas e as acalmias. Descobriram que a proa às vezes pode não ser à frente e que o quotidiano afinal é tão importante.

Ninguém soube desta viagem, nem quando acabou.
Ele regressou às sensações habituais e ela continuou sem saber o que eram crises existenciais.

Julho 1994

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