09 março 2010

aeonium tri-tabuliforme (tetra)
aeonium (tri)tabuliforme

"Acho que foi no início da Primavera. Sei que um pássaro cantava e outro não. Existem sempre pássaros que não cantam no início da Primavera.
Voltou a casa para buscar o livro que andava a ler, pois sem um livro ao pé de si sentia-se sozinho. Costumava dizer que os livros lhe faziam mais companhia do que as pessoas e do que os pássaros que cantam, até dos que só cantam no Inverno.
Gostava sempre das palavras que lia, de todas elas, porque o divertiam e lhe mostravam coisas que desconhecia e gostava de as repetir em silêncio ou em alta voz, trocando-lhes a ordem, numa espécie de jogo de possibilidades, tentando, claro está, manter a coerência do discurso. Mas ele também sabia que as palavras eram seres especiais, com personalidade e vontade própria, que se renovam e frutificam e, tantas vezes, tranquilizam e consolam.

Dizíamos nós que Março ainda estava na lembrança e de Abril se esperavam as anunciadas águas, quando se apercebeu de que não encontrava em nenhum lado o livro que o tinha feito voltar a casa. Não é possível, pensou, ninguém lá entrou em casa e a literatura, por muito viva que seja, não tem pernas, gracejou consigo mesmo, tentando afastar a angústia do momento.
Sentou-se por um momento no sofá, a que ternamente chama sofá-cama, não que o dito sofá possua tais intrínsecas características, mas porque a cama lhe tem imensos ciúmes, e tentou uma vez mais lembrar-se de onde poderia ter deixado o livro, não podia estar longe. Tinha a mesma relação com os livros que se tem com um namoro recente, não suportava a ideia de estar afastado dele durante um dia que fosse.
Poderemos nós ser reféns das palavras? pensou. Do que dizemos? Do que ouvimos?

Não podia gastar muito mais tempo nesta sua demanda e, deveras contrariado, saiu. Desta vez, saía de casa sobrecarregado. Subrepticiamente, dentro da sua cabeça, preparava-se uma revolução, amotinavam-se as palavras. Ele não estava habituado a nada disto, sempre tinha sido ele quem detinha a batuta, quem conduzia as ideias, mas as palavras tinham ficado à solta e tornaram-no seu refém, vestiram-se a rigor, traje marcial, comunicados à hora certa e apenas para os média, garbosas, elegantes, respeitadoras das patentes...
Foi um inferno durante um tempo, que lhe pareceu eterno, até que o Verão deixou de ser uma miragem e a Dúvida se juntou às fileiras daquela guerra já sem sentido. Por fim, percebeu que é impossível controlar as ideias e querer ser maior do que todas as palavras.

Ouvimos dizer que começou agora a escrever o seu segundo livro."

Lisboa, 9 de Março de 2010

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